A Falsa Revolução do Cinema: Por que o VEO 3 Não Vai Mudar Nada

Por Flávio Bock

Toda semana surge um novo anúncio de IA que promete “revolucionar” algo. Desta vez é o cinema que está na mira, com o lançamento do VEO 3 da Google gerando uma avalanche de comentários sobre como “nada mais será igual” na sétima arte. Permito-me discordar frontalmente dessa visão.

O Equívoco Fundamental

Quando vejo pessoas falando que o cinema vai se revolucionar com ferramentas como o VEO 3, percebo um equívoco fundamental: confundem revolução tecnológica com revolução artística. Sim, a tecnologia é impressionante – vídeos de 8 segundos com áudio sincronizado, realismo visual quase indistinguível da realidade, controles de câmera precisos. Mas onde está a revolução?

O que estamos vendo não é uma revolução, é uma evolução natural da commoditização do entretenimento. O final dessa história não é um novo renascimento cinematográfico, mas sim o que sempre foi o destino lógico da indústria do entretenimento: a personalização extrema do consumo.

O Futuro Que Ninguém Quer Admitir

Vamos ser honestos sobre para onde isso está indo. Em poucos anos, você vai abrir a Netflix, comprar um “roteiro base” (provavelmente gerado por IA também), escolher o gênero, o tom emocional, ajustar o nível de tensão, selecionar rostos familiares para os personagens principais, e o filme será criado em tempo real enquanto você assiste.

Querem ação? Aumenta a adrenalina. Querem romance? Sobe o nível de química entre os protagonistas. Meio da noite e querendo algo mais leve? A IA ajusta automaticamente o tom para ser menos intenso. Tudo personalizado, tudo sob demanda, tudo feito para satisfazer exatamente o que você quer sentir naquele momento.

A Morte da Experiência Coletiva

E isso é exatamente o oposto do que o cinema sempre foi. Cinema é arte coletiva – tanto na criação quanto na fruição. É um cineasta impondo sua visão, obrigando você a ver o mundo pelos olhos dele, confrontando você com ideias e imagens que talvez você não escolheria por conta própria.

Quando Kubrick fez “2001: Uma Odisseia no Espaço”, ele não perguntou para a audiência se queriam 20 minutos de silêncio contemplativo. Quando Tarkovsky esticou planos até o limite da paciência humana, não estava pensando em personalização. Essas são experiências que transformam justamente porque não são feitas sob medida para nosso conforto.

A Democratização Que Não Democratiza

O argumento da “democratização” também é falacioso. Sim, mais pessoas podem criar vídeos impressionantes. Mas criar vídeos não é fazer cinema. Cinema não é só imagem em movimento com som sincronizado – isso é apenas a parte técnica.

O que diferencia cinema de “vídeo bem feito” é a visão autoral, a capacidade de dizer algo sobre a condição humana, de criar uma experiência que ressoa além do momento da fruição. E isso não se democratiza com ferramentas, isso se desenvolve com anos de estudo, vivência, reflexão.

O Verdadeiro Impacto

O VEO 3 e ferramentas similares vão sim ter um impacto enorme. Mas não no cinema – na indústria publicitária, na criação de conteúdo para redes sociais, na produção de material corporativo. Vão baixar custos, acelerar prazos, permitir que pequenas empresas criem campanhas que antes só grandes estúdios conseguiam.

No cinema de verdade, pode até ter algumas aplicações interessantes para pré-visualização, testes de conceito, criação de storyboards animados. Mas isso são ferramentas de produção, não revolução artística.

A Ilusão da Revolução

A cada avanço tecnológico na história do cinema – som, cor, efeitos especiais, CGI, captura de movimento – alguém gritou “revolução!”. E o que aconteceu? O cinema se adaptou, incorporou as ferramentas úteis, descartou as modas passageiras, e continuou sendo o que sempre foi: a arte de contar histórias com imagens em movimento.

A verdadeira revolução no cinema não vem de ferramentas, vem de cineastas que encontram novas formas de olhar para o mundo. Vem de quem usa qualquer tecnologia disponível – seja uma câmera de celular ou o VEO 3 – para dizer algo que ainda não foi dito.

A Conclusão Inevitável

Daqui a cinco anos, quando toda essa euforia passar, vamos olhar para trás e perceber que o VEO 3 foi mais um passo na industrialização do entretenimento personalizado. Útil, eficiente, impressionante tecnicamente. Mas revolucionário para o cinema? Não.

O cinema de verdade vai continuar sendo feito por pessoas que têm algo a dizer e encontram formas únicas de dizer isso. Com ou sem IA.

E enquanto isso, a Netflix vai estar vendendo roteiros personalizados para uma audiência viciada em ter suas expectativas atendidas com precisão algorítmica. Isso não é revolução do cinema. É a evolução natural do fast-food cultural.

Flávio Bock é crítico e analista de cinema e tecnologia.

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